domingo, 11 de setembro de 2011

Rogério Lacaz-Ruiz


O Limite e a Tolerância

Os maldizentes, como os mentirosos, acabam por não merecer crédito, ainda mesmo dizendo verdades.
A maledicência é uma ocupação e lenitivo para os descontentes.

(Marquês de Maricá)

Introdução


Tudo que é "perfeito" tem limites impostos pelo seu próprio ser ou estado de "perfeição": um ser que manifeste as suas qualidades não o pode fazer sempre em todos os aspectos. O imperfeito, além de não manifestar sua potencialidade, quando o faz, pode fazê-lo de modo a não preencher as características do seu ser.

O homem é um ser social e possui uma individualidade. Não é perfeito e portanto, sob diversos aspectos, limitado. Precisa viver consigo mesmo e com os outros, porém, as leis pessoais não são as mesmas que as sociais. Pelo valor que é a individualidade, alguns homens são melhores em certos aspectos; outros, em outros, e assim a sociedade se completa e a vida social é possível.Mas a moeda tem outra face e o fato das pessoas diferirem em tantos aspectos pode gerar atritos de valores. Os limites das pessoas também são diferentes. Neste ponto começa o limite entre o pessoal e o social. Existem situações que podem ser ignoradas, passíveis de serem aceitas, em prol da sociedade, do bem comum. Mas o limite não é fixo, pode variar muito: toleramos algo numa manhã, mas se o mesmo assunto for apresentado à noite..., passa dos limites. Quereríamos que este limite fosse mais elástico, e de certo modo o é. O limite da tolerância tem por um lado a manutenção da individualidade e por outro a inclusão do individual no social. Se isto não ocorrer, alguns perdem sua individualidade e outros são excluídos e preferem se isolar do convívio social.

Neste conviver, o homem percebe que seus sonhos nem sempre são realidades quando se analisa na perspectiva do tempo. A certeza da morte o incomoda, seja pelo desejo de realizar-se, de deixar uma contribuição para a sociedade, ou pelo nihilismo teórico-prático em que muitos podem mergulhar.

Nossa liberdade é o preço da nossa existência, segundo Rodríguez-Rosado (1976). Existimos como seres humanos livres. Se não tivéssemos liberdade, nossa existência com certeza não seria da mesma forma. Seríamos outros seres, incapazes de optar, pois nosso protocolo seria rígido. Ao optar, por exemplo, entre ficar em casa estudando ou sair com os amigos para descansar, em qualquer um dos casos, mostraremos que somos livres - e responsáveis -, mas pagaremos o preço da nossa livre decisão. Cada ser humano pode optar, e ao escolher exclui algo. E todas as nossas ações podem ser vistas por terceiros, que nos rotulam em função das nossas ações. Existimos e somos, mas nem sempre gostamos de ser rotulados pelos nossos defeitos, modos etc. Algumas pessoas possuem defeitos mais evidentes, que se manifestam no convívio social. A semelhança de uma verruga negra e grande na ponta do nariz; caso estivesse escondida em outra parte do corpo, chamaria menos a atenção. Assim são nossos defeitos. Muitas vezes eles são evidentes, outras não.
A mente humana por vezes tende a caricaturizar em função dos traços ou atitudes negativas daqueles que nos cercam. Melhor seria ver os aspectos positivos dos outros: é mais fácil ensinar algo do que fazer alguém esquecer alguma coisa. Assim, poderíamos afirmar que a primeira impressão é a mais forte. Mas as pessoas mudam, por conta própria ou com a ajuda de terceiros. E no processo de mudança se percebe, por um lado, um limite pessoal; por outro, uma tolerância social. No final de cada interrelação, ambas as partes são capazes de exibir um estado superior ao anterior. É sobre estes pontos que iremos tecer algumas considerações.

A tolerância

A palavra tolerância provem do latim tolerantia, que por sua vez procede de tolero, e significa suportar um peso ou a constância em suportar algo. Teve no passado, e com sentido negativo, a função de designar as atitudes permissivas por parte das autoridades diante de atitudes sociais impróprias ou erradas. Hoje em dia, pode ser considerada uma virtude e se apresenta como algo positivo. Esta é uma atitude social ou individual que nos leva não somente a reconhecer nos demais o direito a ter opiniões diferentes, mas também de as difundir e manifestar pública ou privadamente(1).

Tomás de Aquino diz que a tolerância é o mesmo que a paciência(2). E a paciência é justamente o bom humor ou o amor que nos faz suportar as coisas ruins ou desagradáveis. Ao tratar do tema da justiça, o Aquinate também nos indica que "a paciência - ou tolerância - é perfeita nas suas obras, no que respeita ao sofrimento dos males, em relação aos quais ela não só exclui a justa vingança, que a justiça também exclui; nem só o ódio, como a caridade; nem só a ira, como a mansidão, mas também a tristeza desordenada, raiz de todos os males que acabamos de enumerar. E por isso, é mais perfeita e maior, porque, na matéria em questão, extirpa a raiz. Mas não é, absolutamente falando, mais perfeita que as outras virtudes, porque a fortaleza não suporta os sofrimentos sem se perturbar, o que também o faz a paciência, mas também os afronta, quando necessário. Por isso, quem é forte é paciente, mas não, vice-versa. Pois a paciência é parte da fortaleza."(3)
A diferença de abordagem, seja ela histórica ou dentro dos diferentes campos das ciências particulares, nos permite observar que dentro das humanidades, a tolerância diz respeito ao ser humano ou a sociedade, enquanto que nas ciências exatas, está baseada em leis físico-químicas e biológicas. Alguns exemplos ilustram o uso da palavra (in)tolerância ao longo dos séculos.
No final do séc. XVI, muito se falou de tolerância religiosa, eclesiástica ou teológica. Hoje em dia também se tolera - pacientemente - em pontos que não são essenciais de uma determinada doutrina mesmo que seja em detrimento da mesma, mas para uma melhor convivência social(4).
No passado (desde meados do séc. XIX), maison de tolérance(5) era a casa ou zona de prostituição: muitos toleram esses locais, procurando evitar, assim, a disseminação desses costumes em toda sociedade.
Na medicina, a palavra "tolerância" é utilizada para significar a aptidão do organismo para suportar a ação de um medicamento, um agente químico ou físico. Desta forma, as diferentes espécies toleram de diferentes modos os microrganismos: alguns adoecem e morrem, a outros nada ocorre. Os níveis de tolerância à radiação têm tal limite... Tecnicamente, a tolerância é o limite do desvio admitido dentro das características exatas de um objeto fabricado ou de um produto e as características previstas. Não são todos que suportam os medicamentos, e algo que está fora das normas algumas vezes pode ser tolerado. E assim pode se falar também de suportar fisicamente ou mentalmente algo pesado; em tolerar erros gramaticais; assim, podemos descer um degrau, recebendo o conhecimento neste nível, o qual é mais tolerável; algo pode ser tolerável, inclusive indiferente, aceitável: "o almoço foi bastante tolerável". Até mesmo dentro da ecologia Odum (1953) no seu livro Fundamentos de Ecologiacoloca exemplos de limites de tolerância dentro da natureza(6).
Dentro das leis físicas, o universo tende a se desorganizar. Por outro lado, tudo que está vivo, tende a se organizar. Mas o homem, sendo livre, pode "ajudar" a desorganizar o mundo. Como num processo de tentativa e erro, as pessoas buscam soluções para viver consigo mesmo e com as demais. Às vezes parece que temos na mão um saco cheio de bolas, que tentamos arremessar e colocá-las dentro de um buraco distante. De modo simplista, dizemos que podemos acertar ou não, mas na prática, as coisas não ocorrem bem assim. O acerto aparece como uma vitória. Foram centenas de arremessos, e um acerto! Tolerar é aceitar os limites, é na realidade ser paciente. A paciência é justamente aceitar o desagradável, com bom humor.
Também na literatura universal, existem alguns provérbios que nos recordam a tolerância.
Tolérance n’est pas quittance(7), que poderíamos traduzir por: "Tolerância não é liberdade total...". Numa pequena cidade do interior, um deficiente físico, sem pernas, perambulava pela cidade com auxílio das duas mãos e o apoio do tronco. Durante anos, no seu trajeto, era debochado por um homem que dizia: - Vai gastar o... Um dia ele perdeu a paciência e matou o importunador. Na justiça, o aleijado foi duramente atacado, e tido como assassino cruel. O advogado, ao iniciar a defesa, falou durante dez minutos elogiando a qualidade de cada membro do júri, até que o juiz interrompeu: - Se o senhor não iniciar a defesa, não permitirei que prossiga. Sabiamente, o advogado respondeu: - Meritíssimo, se o senhor não agüentou dez minutos de elogios, imagine a situação do réu que suportou anos de insultos... Nestes casos, pode valer o provérbio: "Não seja intolerante a menos que você se confronte com a intolerância"(8).
Quanto à tolerância, costumamos atuar, como diz o provérbio, "com dois pesos e duas medidas": tendemos a ser muito complacentes com os desvios de nossa conduta (e isto quando os reconhecemos...) e implacáveis com os outros: não lhes damos o tempo necessário para mudar. De fato, abandonar um mau costume e atuar de modo completamente oposto é uma tarefa que exige esforço e pode durar meses ou anos... E, quanto aos outros, exigimos que tudo ocorra no mesmo instante, esquecendo que as coisas têm seu ritmo natural. Um feijão demora para germinar, crescer, florir, dar a vagem... e nós às vezes somos semelhantes às crianças, que deixam o feijão no algodão do pires com água, e no dia seguinte se decepcionam com a ausência de vagens. Para viver, deixar viver(9).
O que leva duas pessoas a entrarem em discórdia? A invasão do direito alheio, o ultrapassar o limite de tolerância, a incapacidade de compreensão mútua ou própria, a falta de empatia, a nossa própria natureza, o nosso temperamento. Somos limitados, e isto se manifesta também no modo tosco com que nos relacionamos muitas vezes com as pessoas.
A distância que existe entre as pessoas, em parte é criada por cada um. Às vezes percebemos que com alguns, já num primeiro momento, se consegue chegar perto, e falar sem gritar ou mandar mensageiros, mas nem sempre é assim. É preciso usar a inteligência, para encontrar o caminho da comunicação entre as pessoas. Inteligência e vontade de querer se comunicar... ou não.


Os limites

Nossas limitações são patentes. Não somos o que queremos, não fazemos tudo que sonhamos, não temos o dom de estar onde desejamos. Dentro destes limites é que nos movemos. Conhecer os limites pessoais e os dos outros - pois somos seres que não se repetem - é uma tarefa que dura toda a vida. O limite também não é algo estático, as pessoas mudam. Logo, o sistema de comunicação entre as pessoas é algo dinâmico e tem suas "leis" próprias, que cabe a cada um descobrir em cada momento. Em vez de gastar tempo reclamando que não existe comunicação, poderemos empregá-lo, verificando como estabelecer esta relação.

Por outro lado, quando as pessoas se aproximam, uma tem em relação a outra uma expectativa. Na prática existe também um pré-conceito, mas por ora, vale a pena refletir sobre a expectativa.


Expectativa

Nossas atividades estão inseridas no contexto da expectativa. Spes em latim, significa tanto esperança como expectativa de algo feliz. Um novo emprego, um novo trabalho, uma nova amizade geram expectativas. Alguns defendem a postura de não ter expectativa de nada, e assim, o que ocorrer de bom nos fará felizes. Mas isto não condiz com a etimologia da palavra. Temos esperança de que se agirmos de um modo, seremos felizes. Se nos relacionamos com alguém, é porque precisamos deste alguém, ou gostamos de estar com ele.

Quando um aluno se aproxima do professor para pedir um estágio, ambos têm uma expectativa. Explicitar estas expectativas um ao outro, evita a decepção. O combinado não sai caro, reza o ditado popular. Desta forma se evitaria a conhecida antropofagia...
A antropofagia nos une, quando os interesses pessoais têm a possibilidade de serem supridos pelas habilidades alheias. Agumas vezes o aluno apenas quer uma bolsa, ou aprender uma técnica, publicar um trabalho, decidir sua vida profissional; ou talvez ele esteja querendo ficar no estágio uma semana, um mês, um ano... sua vida toda. E como iremos saber se não perguntarmos? O professor também espera algo do aluno. Às vezes de modo possessivo, outras vezes de modo diferente, como mão de obra. Pode pensar também num talento para vida acadêmica, e se por um lado vê um discípulo, não pode deixar de encobrir as dificuldades pelas quais irá passar. Mas isto tudo, não passa de dúvidas. Um tem expectativa do outro, e nada mais lógico e razoável que exista um diálogo entre ambos, antes de iniciar as atividades. Alguém tem expectativa de alguém, mas ninguém não tem expectativa de ninguém... E os outros são para nós alguém... ou ninguém?!

Compreensão

Compreender cada um como é, acaba sendo o melhor modo de interagir. As vezes as pessoas precisam de peixe, outras vezes, precisam de trabalho educativo sobre a pesca, e sempre atenção externa de outras pessoas. Todos precisamos de cúmplices em nossas atividades.

Compreender, querer, perdoar. Esta tríade resume bem o relacionamento humano ideal. Da cultura popular somos capazes de lembrar: "Deus perdoa sempre, os homens de vez em quando, a natureza nunca" ou "Errar é humano, perdoar é divino". O perdão absoluto é divino. Nós podemos ter o ideal de perdoar, mas nem sempre conseguimos, como na terrível fórmula: "Perdoar, eu perdôo; mas esquecer, não esqueço...".
O erro das pessoas leva às vezes a conseqüências sérias para um perdão imediato. A reação pessoal ou social contra aquele que errou, pode ser irasciva, vingativa, punitiva. Mas o que se quer mesmo, é que aquele que errou, e com isto de certa forma agrediu, reconheça e mude. Talvez precise sofrer as conseqüências do seu ato para merecer o perdão. Não reconhecer o próprio erro ou de certa forma encobri-lo já consiste em parte da pena, por não se adequar com a verdade. Perdoar antes porém, abre uma porta honrosa para o agressor, que não precisa gastar tempo se justificando. Aqui vale mais uma definição do ser humano: aquele que é capaz de se desculpar e justificar em todos os seus atos, mas que ficaria envergonhado de manifestar esta desculpa ou justificativa em voz alta para outros. Sim, as desculpas que damos a nós mesmos para fazer coisas erradas, não convencem...
O castigo piora o ruim e melhora o bom, e como o bom deve ser melhorado, não se deve evitar o castigo. Mas, o ruim? Não merece o castigo, ou além do castigo precisa de algo para melhorar? Talvez precise também da compreensão... As pessoas aprendem também pelos erros, próprios ou alheios, históricos ou do presente. Quanto maior o erro, piores as conseqüências, e menores as chances de errar de novo. A evidência do erro para a sociedade mexe com os brios daquele que errou. A compreensão não pode ser confundida com a cumplicidade no erro; a cumplicidade está associada ao desejo de ser solidário com a pessoa que errou e disposição de ajuda para reverter esta situação. Esta aventura de compreender implica num compromisso. O amigo, é aquela pessoa que apesar de conhecermos perfeitamente como é, continua sendo amigo ou: "O amigo é o amigo do amigo".
O perdão, pode ser imediato ou não, com consequências ou sem elas. Ora, o tempo é apenas uma convenção, mas nem por isto deixa de existir... As pessoas, como o bom vinho, melhoram com o tempo ou, para continuar remetendo a provérbios: "O tempo é o melhor remédio". As pessoas, como já dissemos, buscam sempre uma justificativa para os seus atos, e também para perdoar. Em todos estes casos, é difícil ter a medida, pois a pena deve ser proporcional a ofensa, e o ofendido mostra que é grande, perdoando. As leis positivas neste sentido são como que a segurança da sociedade, na tentativa de se estabelecer uma medida; um verdadeiro protocolo social a ser atingido.

Sintonia

Uma rádio que está sintonizada, pode ser escutada sem ruídos, interferências. Escutar é um ato humano que reflete uma disposição interior. Peter Drucker dizia que "o verdadeiro comunicador é o receptor". Escutar é permitir o diálogo. A prática medieval de dialogar num debate, merece ser lembrada. Enquanto um falava, o outro era obrigado a escutar, pois antes de colocar seu ponto de vista, era obrigado a repetir a idéia do primeiro - com sua expressa aprovação - antes de colocar a sua resposta. Alguns têm o defeito quase físico de não escutar e a partir deste ponto seguem as discórdias.

Essencial, importante e acidental

Uma classificação das realidades pode incluir estas três divisões: essencial, importante e acidental. Talvez exista desacordo no que incluir em cada item. Pensar antes de discutir se aquilo é essencial ou importante ou acidental, em muito reduziria as discussões. Usar a inteligência para identificar exatamente onde se pretende chegar, também é uma forma de diminuir os problemas. Seja na via direta, não "criando" problemas, seja indiretamente, pela compreensão das realidades limitadas.

"Humildade não faz mal" - esta máxima popular, ajuda a retratar mais uma vez a dificuldade que temos de enxergar o mundo real. Por um lado, temos esta deficiência, e por outro temos a teimosia de justificar os atos errados. Se o diálogo amigo nos faz ver o erro, nada melhor que reconhecer. A humildade é a verdade... e a humildade não faz mal!

Ignorância e preconceito

As pessoas muitas vezes não atuam de modo errado por má fé, e sim por ignorância. Com certeza fariam de modo distinto, se soubessem como fazer. Esta tarefa não tem fim, e questionar-se sobre o empenho pessoal de diminuir o nível de ignorância, nos faria no mínimo reconhecedores da dívida social que carregamos. Aprendemos tanto, e por este motivo somos capazes de questionar as deficiências. Não são os professores e pais os únicos interessados. Ninguém dá o que não tem, e por isto sempre temos algo que dar a outrem, e assim diminuir a ignorância.

Outro ponto é o preconceito... O preconceito gera um prejuízo (e também um prejuízo). Uma idéia pré-concebida cria uma barreira para compreender a realidade. Uma pessoa que não queira ouvir, ver ou escutar, tem muitas vezes o preconceito de não aceitar que os outros possam pensar de modo diferente.

Considerações finais

A incapacidade pessoal provada, leva a ressaltar os possíveis limites alheios em vez de reconhecer os próprios.

No convívio social, a tolerância com os demais, clama por uma interação. Ou se ajuda, ou se atrapalha. A indiferença explica mas não resolve.
Mas a quem ajudar? E como ajudar? Castiga o bom e ele melhorará, castiga o ruim e ele piorará. Ou É melhor ensinar a pescar que dar o peixe. Como resolver situações pontuais, sem levar em conta o princípio da subsidiariedade? Se ajuda quem precisa, até que ela tenha condições de independência para aquele tipo de ajuda. Assim se respeita a autonomia, se exerce a autoridade, se compreende o verdadeiro valor da humildade.
As crianças mimadas representam um problema para a sociedade. As pessoas precisam de afetividade, mas mimar é dar mais do que elas realmente precisam. Com certeza, a tolerância e sua medida requerem um salutar e apaixonante exercício de análise e síntese. Esta é a postura de quem quer simplificar as coisas para ter o tempo livre, ou o ócio tão necessário em nossos dias.
Tolerância zero, é um tipo de lei social, que não permite o erro sem punição. Isto é levar em conta, que as pessoas são boas... Castiga o bom e ele irá melhorar... Mas o homem não é bom por natureza. Ele pode se fazer bom, se tem disposição de ser, pois o homem é um ser axiotrópico.
Não ter tolerância com qualquer tipo de erro, de certa forma ajuda a resgatar o que é próprio da personalidade humana: participação, unicidade, autonomia, protagonismo, liberdade, responsabilidade, consciência, silêncio, provisoriedade e religião. Höffner (1983). Cada uma das características do ser humano poderiam ser exploradas neste estudo, mas o protagonismo talvez seja o que mais atenção mereça. Somos sujeitos do nosso pensar, agir e omitir. Nossos atos assumem um caráter irrevogável do nosso eu. Podemos arrepender-nos, mas não nos desfazer nossos atos(10). E numa sociedade onde tudo é socialmente aceito, tudo acaba sendo tolerado. As pessoas perdem a noção do que é certo ou errado. A inteligência deixa de discernir, e a vontade fica fraca para agir. As pessoas prezam o que lhes é caro, e o dinheiro é caro a todos. Assim multar é uma forma de obrigar as pessoas a refletirem sobre si mesmas e a sociedade. Isto não é um direito, é uma tolerância(11).
Quem não vive como pensa, acaba pensando como vive. Aprender a observar a realidade do ser pessoal e do ser social é a melhor forma de compreender o limite que existe nas coisas e nas pessoas. Caso contrário, gastar-se-ia tempo moendo água, encontrando defeitos onde existem apenas características. Com certeza assim, seremos mais tolerantes com os outros e conosco próprios.
Para finalizar, vale a pena recordar os ensinamentos de Sócrates, recolhidos por Reale & Antiseri (1990) "A felicidade não pode vir das coisas exteriores, do corpo, mas somente da alma, porque esta e só esta é a sua essência. E a alma é feliz quando é ordenada, ou seja, virtuosa. Diz Sócrates: Para mim quem é virtuoso, seja homem ou mulher, é feliz, ao passo que o injusto e malvado é infeliz. Assim como a doença e a dor física são desordens do corpo, a saúde da alma é a ordem da alma - e esta ordem espiritual ou harmônica interior é a felicidade"(p. 92).

Referências Bibliográficas
Le Petit Robert Dictionnaire de la Langue Française. [en CD-ROM] Liris Interactive : Paris, 1996.
The Oxford English Dictionary 2ed. [on CD-ROM] Oxford : Oxford Univ. Press, 1992.
Höffner, J. Christliche Gessellschaftslehre. Verlag Butzon & Becker. 1983.
Maloux, M. Dictionnaire des proverbs sentences et maximes. Paris: Larousse, 1986. p.516.
Morató, J.C.; Riu, A.M. Diccionario de filosofía en CD-ROM. Barcelona: Editorial Herder. 1996.
Reale, G.; Antiseri, D. História da filosofia. vol. I. São Paulo : Paulus, 1990. p.92.
Rodríguez-Rosado, J.J. La aventura de existir. Pamplona : Eunsa, 1976.

1. "En principio, la idea de tolerancia como actitud social razonada filosóficamente, tiene un origen religioso: surge a partir de los primeros años de la reforma protestante, hacia los siglos XVI-XVII, cuando la autoridad política se enfrenta al hecho de que los súbditos no aceptan la religión oficial; a los tiempos de unidad religiosa, en que domina la concordia doctrinal entre el «imperio» y el «sacerdocio», suceden tiempos en que se impone el principio de cuius regio, eius religio, decidido como derecho de los príncipes -ius reformandi- en la paz de Augsburgo (1555) y en la de Westfalia (1648). Con la afirmación, al mismo tiempo, de la libertad de conciencia, por parte de los teóricos reformados, y el creciente influjo de ideas humanistas que favorecen la autonomía de los asuntos que se consideran humanos, se llega a la separación práctica de Iglesia y Estado y, pronto, a la justificación teórica de la misma. Aparecen múltiples argumentaciones a favor de la separación y de la libertad de conciencia: se insiste en que la fe se ha de practicar de forma voluntaria; que la verdad no ha de imponerse por la fuerza, sino por sí misma; que la persecución no está de acuerdo con la caridad cristiana, etc. No fue de poca importancia la insistencia de determinadas «sectas» religiosas, comunidades religiosas separadas de las confesiones dominantes, que difundieron de forma más organizada la idea de que la Iglesia ha de ser una asociación de pertenencia voluntaria. (...) La defensa filosófica de la tolerancia, a partir de la segunda mitad del s. XVII, toma sus argumentos, a favor de la libertad de conciencia, de la naturaleza racional del hombre y de principios de la ley natural, e insiste en que la libertad de creencias y costumbres forma parte del derecho natural y se distingue claramente entre ley civil y ley divina." (cf. Morató & Riu, 1996).
2. Tolerantia vero est idem quod patientia (cf. Sent. ds. 33 q. 3 a. 3 c).
3. Summa Theologica. Thomae Aquinatis (I-II, 66, 4).
4. Daí derivam as expressões tolérance civile, marge de tolérance etc. (cf. Le Petit Robert Dictionnaire de la Langue Française, 1996)
5. Cf. Le Petit Robert Dictionnaire de la Langue Française, 1996.
6. "Trees give way to grassland as the amount of available water drops below the limits of tolerance for forests" (cit. por The Oxford English Dictionary, "tolerance", 1992).
7. J.Heywood, Proverbs in the English Tongue [1546], In: Maloux (1986), p.516.
N’ayez d’intolerance que vis-à-vis de l’intolérance. Provérbio francês - Hippolyte Taine, [1828-1893], In: Maloux (1986), p.516.
8. Pour vivre, laisser vivre. Provérbio espanhol - Balthasar Gracián, Oraculo manual, 192. [1647], in Maloux (1986), p.516.
9. Cf. Lacaz-Ruiz (1998) Projeto provérbios para escolas de primeiro e segundo graus. Mandruvá : São Paulo, 1998. p.55-60.

10. Ce n’est pas un droit, c’est une tolérance. (cf. Le Petit Robert Dictionnaire de la Langue Française, 1996).

Rogério Lacaz-Ruiz
Prof. Dr FZEA/USP
roglruiz@usp.brAnne Pierre de Oliveira
Acadêmica da FMVZ/USP
Viviane Scholtz
Acadêmica da FMVZ/USPvivisi@mailcity.com
Nelson Haruo Anzai
Pós-Graduando da FMVZ/USPnhanzai@mailexcite.com 

Crédito: http://www.hottopos.com.br/vidlib2/o_limite_e_a_toler%C3%A2ncia.htm

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Do Jornal Tribuna da Bahia, homenagem a João Falcão

Política 
Morre, aos 92 anos, o jornalista João FalcãoPublicada: 28/07/2011 00:27| Atualizada: 28/07/2011 11:03






O fundador do Jornal da Bahia, escritor, jornalista e empresário, João Falcão, de 92 anos, morreu na noite de ontem. Nascido em Feira de Santana, em 1919, João Falcão era bacharel em Direito. Ele teve intensa atuação na vida política nos anos 1940 e 1950, militando no Partido Comunista e na imprensa baiana.

Em 1945, fundou o matutino comunista “O Momento”, e em 1958 o combativo “Jornal da Bahia”. Autor do livro “Giocondo Dias - A Vida de um Revolucionário”, Editora Agir, 1993, Falcão era idealista. Comunista, ligado a Carlos Prestes, serviu até mesmo como seu motorista, como o próprio conta em livro. João Falcão casou-se em 1947 com Hyldeyh Ferreira, e tiveram sete filhos, vinte um netos e onze bisnetos.

Ao saber da morte do jornalista, o presidente da Associação Bahiana de Imprensa (ABI) e da Tribuna da Bahia, Walter Pinheiro, disse que a “Bahia perdeu um idealista, empreendedor, um guerreiro e intelectual. E eu perdi um amigo”. De acordo com ele, ainda no último dia 15, “o convidávamos para o lançamento da Medalha pelo Bi-Centenário da Imprensa Baiana, quando também seria homenageado, e ele, com a lhaneza de sempre, justificava a ausência, em face do tratamento a que vinha se submetendo”.

“Foi-se a última chance de agraciá-lo - em vida - com uma honraria que, em parte, saldaria o grande débito que a Bahia alimentou perante João Falcão, diante de sua incessante luta pela liberdade de imprensa, por uma sociedade mais justa e pelo desenvolvimento do nosso Estado.”

Sempre lembrado pelo lema “Não deixe esta chama se apagar”, com o que manteve nas ruas o Jornal da Bahia, mesmo ao transferir o seu controle acionário, nunca perdeu a imagem de um destemido escriba, lançando livros que preservaram a memória de um baiano cujos exemplos haverão de ser cultivados pelas gerações que se seguem”, concluiu Walter Pinheiro.

João da Costa Falcão nasceu a 24 de novembro de 1919 na cidade de Feira de Santana, filho de João Marinho Falcão e Adnil da Costa Falcão. Fez o curso primário na sua cidade natal, e o ginásio em Salvador, dos anos de 1930 a 1937.

Em 1938, ingressou na Faculdade Livre de Direito. Nesse mesmo ano começou sua militância no Partido Comunista do Brasil, na clandestinidade, porque se opunha à ditadura do Estado Novo, implantada no país em novembro de 1937. Fundou, ao lado de outros jovens, a revista Seiva, que seguia a orientação do PCB. Em dezembro de 1942, formou-se em Direito.

Em seguida, em 1943, foi convocado como soldado para servir ao Exército Brasileiro, em razão do Brasil ter declarado guerra ao Eixo, constituído pela Alemanha, Itália e Japão e ter se colocado ao lado dos Aliados, bloco constituído pela Inglaterra, Estados Unidos da América e a União Soviética.

Esta experiência durou pouco tempo, porque, em conseqüência de suas atividades comunistas, foi condenado, neste mesmo ano, a cinco anos de prisão pelo Tribunal de Segurança Nacional, foi expulso do Exercito e preso, até seus advogados conseguirem sua absolvição perante aquele Tribunal, meses depois.
João Henrique lamenta a morte do jornalista João Falcão e diz ele é exemplo para novas gerações

O prefeito João Henrique lamentou nesta quinta-feira (28) a morte do jornalista, escritor e empresário, João Falcão, ocorrida ontem. “Foi um baluarte da imprensa baiana, fundando um dos jornais (Jornal da Bahia) que fizeram história na Bahia e no Brasil pela luta em favor da democracia e contra o autoritarismo”. João Henrique lembra ainda a renovação que João Falcão capitaneou no jornalismo baiano e a valorização que deu a cultura. “É uma perda muito grande para a cultura brasileira. A Bahia está de luto pela perda desse grande patriota. Sua trajetória de vida será sempre um exemplo para as novas gerações. Hipoteco também minha solidariedade aos seus familiares”, disse o prefeito.   

Terra Magazine

Lentidão brasileira preocupa diretor da Feira de Frankfurt

Claudio Leal
Em conversas com editores brasileiros no 2º Congresso Internacional CBL do Livro Digital, em São Paulo, o diretor da Feira do Livro de Frankfurt (Alemanha), Jurgen Boos, pediu ajuda para acelerar os preparativos do pavilhão brasileiro em outubro de 2013, quando o Brasil será convidado de honra. Nos bastidores, ele avalia que o Ministério da Cultura (MinC) demonstra lentidão nos arranjos, que devem estar engatilhados dois anos antes do evento.
Apesar dos elogios do diretor ao programa de traduções, durante sua conferência na Fecomercio, Terra Magazine apurou que Boos revela descontentamento com a ministra Ana de Hollanda e o presidente da Fundação Biblioteca Nacional, Galeno Amorim, por causa da lentidão brasileira, confrontando-a com a celeridade da Islândia, homenageada deste ano.
Em outubro de 2010, o governo federal e a Ausstellungs und Messe GmbH, entidade organizadora da feira, assinaram um acordo. Seis meses depois, em 14 de abril de 2011, Juergen Boos se reuniu com o secretário-executivo do Ministério da Cultura (Minc), Vítor Ortiz. Após o encontro, o MinC anunciou a criação de dois comitês - o primeiro, composto por secretarias e órgãos do ministério (Biblioteca Nacional, Iphan e Ibram); o segundo seria interministerial, para congregar outros setores do governo (Relações Exteriores, Educação, Turismo, Ciência e Tecnologia).
Entretanto, queixam-se os organizadores alemães, nenhum grupo de trabalho foi criado. A coordenação dos preparativos está sob a responsabilidade da Biblioteca Nacional, vinculada ao MinC. Considerado o maior encontro internacional do setor editorial, a Feira de Frankfurt reúne mais de 7.000 expositores. O Brasil já foi homenageado em 1994.
Na Flip, em Paraty (RJ), no início de julho, Galeno Amorim anunciou um programa de incentivo à publicação e tradução de autores brasileiros no exterior, com investimento de R$ 12 milhões até 2020. Para ter impacto na Feira de Frankfurt, o valor investido será de R$ 3,2 milhões entre 2011 e 2013.
Terra Magazine entrou em contato com a Biblioteca Nacional no início da tarde desta quarta-feira (27), mas ainda não obteve resposta oficial.
Crédito: Terra Magazine

sábado, 9 de julho de 2011

BONS ENCONTROS: A POESIA DE PEDRO TIERRA



O capuz
Cá está o capuz sobre a grade.
Traz consigo uma segura
promessa de dor. Na boca
do sentinela um meio riso.
Cá está uma parcela da noite
cobrindo meu rosto.
A mão de meu inimigo
determina  o caminho.
Pelos corredores aprendi
o jeito inseguro dos cegos.
As mãos tateando a parede.
Sob os pés a escada imprevista,
o degrau a mais, a queda,
o riso dos soldados,
o gesto perdido buscando
uma porta que não houve.
O passar dos dias
e as cicatrizes no corpo
ensinaram-me esse caminho.
Nos dedos guardei as arestas,
o ferro das portas,
o fio dos dínamos.
No dorso a marca
desses dias de sombra.
O capuz repete a dor
no corpo de cada combatente,
uma dor mercenária
recrutada a serviço da noite.



















As mãos atadas
No hora do grito
é difícil perceber algo
no rosto dos perseguidos.
Alguns ganham a cor dos homens aflitos,
Outros, um cansaço de mil anos, ou ainda,
a maneira triste dos homens capazes de morte.
Taciturnos depois da noite de suplício.
Era voz de mulher
mas nenhum de nós lhe viu o rosto.
Não é preciso dizer nada
e guardo meus pensamentos:
(contra os golpes do carrasco
restou apenas
a força de minha crença.
Essa foi minha arma,
essa terá sido a sua.
Será a do último
torturado desta guerra.)

















Se algum dia tiveres
de enfrentar essa batalha
não contes com a morte rápida.
Não te espantes de estar vivo
depois do primeiro dia.
Foi apenas o primeiro dia.
Sobretudo não contes
com o gesto humano,
nas mãos de teu carrasco.
Não procures aqui
um gesto que se perdeu
na rua dos oprimidos.
Entre as mãos caladas do torneiro
regressando ao subúrbio,
talvez encontres um gesto humano.













tortura nunca mais...



sábado, 2 de julho de 2011

Nando Reis - Bichos Escrotos

2 de julho, CID TEIXEIRA


O 2 de julho



Antes de mais nada, é um louvor que precisamos fazer ao povo da Bahia quando se fala na independência da Bahia.
 Foi preciso que chegasse 1988 para que, alguma autoridade pública se lembrasse de dizer que dois de julho era feriado. Não era. Para os efeitos legais era um dia como outro qualquer. Só que nenhum feriado foi mais feriado na Bahia do que o dia dois de julho, porque se há um momento em que há uma imposição do povo, este momento é a independência da Bahia.
Joel Rufino tem um livro cujo título me parece que engloba tudo que se possa dizer a respeito do Dois de Julho, "O dia em que o povo ganhou". Dizendo isso, diz tudo, tudo mais que eu possa dizer aqui é o adereço, é o acréscimo, é o enfeite dessa frase "o dia em que o povo ganhou".
Mas só se vai entender "o dia em que o povo ganhou" se nós percorrermos os antecedentes desse dia em que o povo ganhou.
Há um equívoco muito grande até a independência, em falarmos de Brasil como um todo. Um todo, do ponto de vista do colonizador, um todo, do ponto de vista português, aí sim; você tem do Amazonas ao rio da Prata uma colônia que se chama Brasil. Mas do ponto de vista sociológico brasileiro, nós temos váriosBrasis que só vão se compor politicamente na independência, com o nome de José Bonifácio, que é o grande costureiro da unidade nacional.
Repare que a independência dos povos hispano-americanos se fez com um picadinho de Nicaráguas e Panamás e Guatemalas, tudo cortado em miúdo, não foi possível se encontrar um denominador comum para o processo da independência hispano-americana.
No processo da independência luso-brasileira foi possível se encontrar o denominador comum Brasil, graças à costura, graças ao trabalho sistemático de unificação feito por José Bonifácio e seu grupo político. Mas não é desse que quero falar.
Falo, sim, de como é explicável, como é lógico, como fica cabível fazer com que um menino de ginásio entenda por que a independência do Brasil é no dia 07 de setembro de 1822 e nós comemoramos a independência aqui, em 02 de julho de 1823. Será que a Bahia não era Brasil naquela altura?
Era em termos!
 O sul do país, a partir da vinda da família real, a partir de Dom João VI por lá e da ida de Dom João VI, a ficada de Pedro I, o Fico, tudo isso era um foco político vinculado a Lisboa, era um foco político ligado à metrópole portuguesa, era um foco político que tinha muito pouco a ver com o Brasil do nordeste que era o Brasil produtor, o Brasil que interessava ao fisco, o Brasil que interessava ao negociante de açúcar, o Brasil que interessava à produção e não o Brasil que interessava à política.
Por isso que vocês vêem que o Sete de Setembro se faz sem maiores brigas. Dom Pedro diz as palavras que tem a dizer no Ipiranga, Portugal se dá por ciente e as coisas se passam sem maiores brigas, tudo está de acordo desde que se pague o debito com a Inglaterra, desde que não renuncie ao trono português após a morte de Dom João VI, desde que algumas clausulas fossem obedecidas. Ninguém queria manter o sul como colônia, o sul não interessava do ponto de vista tributário, o sul não interessava do ponto de vista da sua produção a Portugal.
Quem interessava era o nordeste, particularmente a Bahia e Pernambuco. Esses dois centros de produção açucareira, cujos tributos sustentavam – o sonho do Oriente já havia acabado há muito tempo para Portugal – cujos resultados tributários sustentavam a monarquia portuguesa, este sim é que era importante, esse que não tinha nenhum empenho, nenhum interesse, nenhuma vontade de que Portugal queria se desligar da situação de colônia.
Daí que não obstante reconhecer, reconhecer tacitamente a soberania de Pedro I no sul do país, a estrutura política portuguesa persistia, mandando para cá, mandando, não é mantendo, não, mandando para cá soldados, Bandeira de Melo, de alta competência, mandando tropa, mandando armamento, em suma, tomando todas as providências no sentido de que a colônia permanecesse colônia nos centros produtores, nos centros de açúcar.
Mas aqui encontravam a outra Bahia, que não era o Rio de Janeiro.
Vale a pena interpretar o que era a Bahia no final do século XVIII, no começo do século XIX.
Em primeiro lugar, safras de açúcar excepcionais. Éramos ricos, éramos muito ricos, éramos tão ricos que havia ricos particulares, os ricos particulares, não é poder público, não; que era capaz de financiar a vinda de toda a pedra lioz para a fachada de uma igreja, sem que isso lhe fizesse mossa na fortuna. Éramos ricos. E ricos, como todos eles que se passa, querem para os filhos futuros brilhantes.
O que é ser futuro brilhante no século XVIII?
É ser estudante na Europa, é ser estudante em Coimbra.
Então, se nós pegarmos a listagem dos estudantes baianos que estudaram em Coimbra, que estudaram em Montpellier, que estudaram em Strasbourg, que estudaram nas principais universidades européias no final do século XVIII e primeiros anos do século XIX; nós vamos ver que está lá a fina flor, a fina flor dos filhos dos senhores de engenho da Baía de Todos os Santos; Santo Amaro,CachoeiraSão Francisco do CondeMaragogipe, mandando seus filhos estudarem em Coimbra, mandando seus filhos estudarem em Montpellier, na França. E essa gente voltando.
Prá que os senhores tenham uma idéia, quem anda pensando em desconstruir a historia de Santo Amaro. Em 1822 – só estou dizendo isso entre parênteses – toda a Câmara de Santo Amaro, toda a Câmara de Vereadores era constituída de graduados universitários na Europa.
Onde é que se pode obter na Câmara de Vereadores de Salvador?
Sem nenhum demérito para os senhores vereadores. Mas me refiro ao padrão, tal nível de cultura, de conhecimento que uma câmara de vereadores de uma vila tinha naquela altura.
Então, não esqueçam de que o final do século XVIII e o começo do século XIX é o grande momento da ebulição napoleônica e da ebulição da Revolução Francesa.
Um estudante santoamarense ou cachoeirano em Paris, ele andava pela rua esbarrando em Diderot, em Dalembert, em Danton, em Marat, em Robespierre, estavam ali, ao alcance da mão deles. A revolução estava vivendo com eles.
Essa gente é que volta para o Brasil, essa gente é que vai ser a classe dirigente na preparação da independência. Então, não se ter uma independência mofina, uma independência meramente palaciana como foi a independência do Brasil no Sete de Setembro. Perdoem os globalistas.
Não se quer isto, o que se quer é uma independência de muito maior profundidade, de muito maior densidade, de muito maior conseqüência. Daí as duas famosas atas, a Ata de Cachoeira e a Ata de Santo Amaro. São dois momentos em que não se fala somente em, vamos dizer independência ou morte, cortar os laços e acabou. Não é isso, não.
Há um planejamento de estado, há uma intenção de obter resultados práticos concretos. Entre outras coisas – só para dar o exemplo aqui – na Ata da Câmara de Santo Amaro de 14 de junho, estabelece as bases dos desligamentos de Portugal como o Brasil, não se vai no açodamento de querer, vamos cortar agora, não é assim. Se vai cortar paulatinamente, se vai cortar consequentemente, inclusive criando uma universidade. Esse criar uma universidade aí tem muita importância.
O que é que se queria? Não deixar romper no Brasil os vínculos de cultura que aquela geração inteira tinha bebido na Europa. Então, você tem a lógica do processo.
Então, quando se quer falar em independência na Bahia, tem que se dicotomizar independência no Recôncavo, independência na capital.
Independência no Recôncavo, feita, pensada pela elite de senhores de engenho e seus filhos.
Independência da capital, o oposto. Nós éramos - não esqueçamos isso – o grande porto – não é demais repetir – ao sul da linha o Equador em todo o mundo que se disponha, nenhuma cidade tinha tal movimento marítimo, tal movimento de carga e descarregar, tal movimento de chegada e saída do que a cidade de Salvador, na segunda metade do século XVIII abaixo da linha do Equador, nenhuma. E marinheiros, criando-se aqui uma indústria de estaleiros, de reparo de navios, de construção de navios que não fazia vergonha comparada com qualquer estaleiro europeu. Qualquer estaleiro holandês ou qualquer estaleiro báltico não ficava muito na frente do que se fazia na Bahia em termos de navegação.
Isso faz com que o movimento do porto, em caráter de mais modesta vinculação, estivesse aceso perante a comunidade, diante do que se passava na Europa revolucionariamente.
Isso fica muito bem visto na conspiração baiana de 1798/99.
Quem conspira? Quem conspira é povo, é soldado de polícia, quem conspira é alfaiate, quem conspira é aquela gente que estava em contato com as tripulações que vinham da Europa encharcadas de idéias novas, encharcadas das idéias revolucionárias.
Então, nós temos – repare só – uma dicotomia, o Recôncavo que quer a independência a partir de uma visão, eu vou dizer grã-fina, mas não é grã-fina que eu quero dizer, não; é elitista dos senhores de engenhos, convivendo com uma cidade que queria a independência a partir de suas camadas populares. Este binômio é fundamental, ele é vital para que entendamos o processo; inclusive o processo da conspiração que em 1798/99 que é o grande precursor, que é aquele que faz com que a Bahia possa pensar em se tornar independente do Brasil.
Reparem que lá estão nomes como o de Manoel Faustino dos Santos Lira, João de Deus do Nascimento, Luiz Gonzaga das Virgens, nomes que aparecem nas camadas mais populares da cidade, convivendo ao mesmo tempo com o padre Francisco Agustinho Gomes, o mesmo que viria a ser mais tarde deputado nas cortes de Lisboa de 1820; convivendo com Francisco Vicente Viana, que viria a ser o barão de Rio das Contas; convivendo com Manoel Inácio da Cunha Menezes, que viria a ser o visconde do Rio Vermelho; então, havia um amálgama, havia realmente de clima proporcionante da independência na Bahia muito ao revés da acomodação que aconteceu no Rio de Janeiro.
Alguém tem notícia aqui de um mero movimento de rua em função do Sete de Setembro?
Foi proclamado, está muito bem, proclamou-se, acabou, não se fala mais nisso e fim de papo. Não houve um movimento de rua, quanto mais uma guerra.
Pois bem, é este movimento de rua que vai criando o caldo, criando confusão e criando, sobretudo, resistência do Brasil independente.
Não será mal dizer que no Rio de Janeiro, ao lado de Pedro I, que queria a independência, José Bonifácio, ao lado do governo em si, havia uma resistência muito aliada aos comerciantes ricos da Bahia que queriam a continuação. Porque é uma razão simples, os impostos do açúcar, os tributos do açúcar tinham tudo a ver com a exportação; ninguém ganhava dinheiro vendendo açúcar para adoçar café na Bahia, o grande negócio do açúcar era o negócio da exportação, cujos tributos estavam nas mãos da elite, da elite comerciante; então, não havia nenhum empenho em romper esse pacto, ao passo que, o produtor de açúcar do Recôncavo, aquele que fazia o açúcar, o dono do engenho, esse era o grande prejudicado porque as condições tributárias eram ditadas pelos comerciantes e não pelos produtores. Outro fato determinante da constituição do esquema de forças que vai determinar a independência da Bahia.
Ora, estas câmaras de vereadores de Santo Amaro e de Cachoeira, de São Francisco do Conde, de Maragogipe, para falar nas quatro principais, estas câmaras ainda não tiveram o respeito, o reconhecimento da sua importância na fixação da mentalidade pela independência. Claro que o que se queria de primeiro plano era a constituição de Pedro I como defensor perpetuo do Brasil, que era uma estratégia para chegar a uma ruptura, a um fim que seria o rompimento final. Mas enquanto não ficassem definidas as linhas de sucessão do império português, enquanto Pedro I fosse ainda, como viria a ser mais tarde, o sucessor natural de Dom João VI, não havia prudência em se fazer uma proclamação prol independência na Bahia, onde estavam concentradas as forças. Porque não esqueçamos isto, Madeira de Melo vem para Bahia depois do Sete de Setembro. Portugal alimentava a idéia de fazer com que isto aqui continuasse colônia, havia uma nítida intenção separatista, um Brasil independente no sul e um Brasil colônia, que se daria outro nome qualquer, no nordeste aqui. Repito, havia todo empenho português em continuar, a Bahia, o Brasil continuar na dependência econômica e política como colônia portuguesa.
É quando nomeia-se para cá Madeira de Melo, comandante das armas.
Para os menos informados, comandante das armas equivale hoje a comandante da região. Todo o aparato militar estava subordinado a ele.
É quando vem nomeado pelo Rio de Janeiro, Manoel Pedro de Freitas Guimarães, para comandante das armas.
Reparem que aí se faz, planejadamente, um confronto, como se diria hoje, numa linguajem mais popular, o Brasil dá testa para a nomeação de Bandeira de Melo. Se se nomear alguém que é um representante do colonialismo português, nomeia-se alguém que é o representante do liberalismo brasileiro.
Começa-se então, as escaramuças na capital, as escaramuças pela posse do cargo. Argumenta-se com filigranas jurídicas, depois argumenta-se a nível da força. Recolhe-se um ao forte de São Pedro para hostilizar, recolhe-se outro ao quartel do 9º para hostilizar. E, em suma, cria-se um clima de hostilidade já militar na cidade de Salvador.
É nessa altura que ocorre o episódio de Joana Angélica, baiana do Recôncavo, líder do convento do qual era sóror.
As escaramuças prosseguiam na cidade, tropas fiéis a Manoel Pedro de Freitas Guimarães estavam no que é hoje correspondente ao terminal de ônibus, na roça dos Barris, como se chamou antigamente. É o fundo do Colégio Estadual da Bahia, é o fundo do convento da Lapa. E tropas fiéis a Madeira de Mello estavam no centro da cidade.
A pergunta permanece, Joana Angélica foi somente a heroína da fé, impedindo o devassamento do seu convento, impedindo a violação da clausura ou Joana Angélica foi também uma heroína da independência, impedindo que as tropas fiéis baianas fossem atacadas de cima para baixo, do convento para o vale?
Finalmente, Manoel Pedro de Freitas Guimarães recolhe-se ao forte de São Pedro, donde se retira e Madeira de Melo fica senhor da cidade.
Ora, senhor da cidade, aí é que se estabelece realmente a equação do processo militar da independência. Recôncavo versus Salvador, capital versus Recôncavo.
Nós tínhamos vontade, a intenção, o dinheiro, nós tínhamos tudo para combater os portugueses, não tínhamos quem entendesse da disciplina militar prestante, quem entendesse ainda de como fazer guerra, de como brigar.
O Jose Bonifácio era maçom, Simon Bolívar era maçom, Pedro Labatut era maçom, estou dando esses três.
Um general francês de pouca informação, depois de troca de correspondência entre Simon Bolívar e José Bonifácio, foi escolhido para vir comandar o processo pela independência na Bahia.
Pedro Labatut chega inteiramente deslocado do contexto baiano prol independência, os senhores de engenho não o conheciam, o hostilizaram; a tropa, muito menos; os escravos, esses nem se consideram.
Então, reparem que chega um homem de alta competência estratégica, inteiramente perdido no processo em que vai comandar. Estabelece um quartel-general na fazenda Cangurungú, a fazenda Cangurungu hoje só tem ruínas. Fica bem pertinho do posto policial de Pirajá. Era propriedade de um homem chamado Afonso Moreira Temporal.
Estabelece o seu quartel-general ali e começa as conferências com os homens do Recôncavo. Alguns de bom grado, outros nem tanto, começam a ceder as suas tropas. Finalmente, Labatut convence a todos que não era possível fazer guerra com pequenas tropas, pequenos grupos armados nos engenhos, era preciso, era necessário acontecer um exército, alguma coisa piramidal onde houvesse uma estrutura de comando, de estado-maior e de tropa. E, depois de muito debate, consegue fazer três brigadas.
A essa altura, o estrategista que era, já conhecia a formação geomorfológica da cidade. Uma cidade em península, uma cidade que era como é até hoje.
Sitiar a cidade de Salvador pela fome era o que havia de mais, não direi fácil, mas de mais óbvio para uma campanha.
Ele divide o seu exército em três brigadas, a brigada da esquerda, do centro e da direita; distribui uma entre Itapoã e Brotas, isto é, fecha qualquer saída da cidade por ali; distribui outra de Brotas até Pirajá, principalmente Pirajá e uma terceira para Aratú e as ilhas e Passé e Mataripe. Pronto.
Aí, ele fecha a cidade e não vai brigar; simplesmente impede a saída para o abastecimento. Começa-se a querer morrer de fome aqui, começa-se a se comer rato na cidade de Salvador à falta de abastecimento.
A batalha de Pirajá, que é à noite, na noite de 07 de novembro de 1822, na verdade é um desespero, não é uma batalha no sentido assim, de ganhar a..., é romper uma linha para arranjar comida. É duro dizer, mas é verdadeiro. Em Pirajá porque Pirajá estava no último local possível de estrada disponível.
Madeira de Melo investe desesperadamente à noite para fazer a conquista daquele posto e obter abastecimento e viveres para a cidade.
A batalha foi à noite e quem descobriu isso. Descobriu não é bem a palavra. Quem anunciou isso, antes de qualquer historiador, foi um poeta, foi Castro Alves. É preciso lembrar como é o "Ode ao Dois de Julho".
"Debruçados do céu... a noite e os astros
Seguiam da peleja o incerto fado...
Era a tocha – o fuzil avermelhado..."
 E como o resultado da batalha só aconteceu no alvorecer, no fim da noite.
"Mas quando a branca estrela matutina
Surgiu do espaço... e as brisas forasteiras
Foram cantar os hinos do arrebol..."
Então, o avô de Castro Alves, o comandante José Antônio da Silva Castro estava na batalha, ele brigou na batalha.
E essa história há de ter sido contada, porque antes de qualquer historiador pesquisar documentos sobre o horário da batalha, já o poeta tinha anunciado isso.
Houve o corneta Lopes ou não houve o corneta Lopes?
De vez em quando aprecem aí uns historiadores que querem redescobrir a pólvora. Agora está na moda dizer não houve o corneta Lopes porque o corneta Lopes era português.
Ora, isso não prova coisa nenhuma, porque a tropa de Labatut estava cheia de portugueses aderentes à causa da independência. Não estavam os negociantes portugueses, mas de pobres portugueses estava cheíssima. E não é nada de mais que um corneteiro... E tenho mais, Ladislau dos Santos Titara, que é o autor do Hino ao Dois de Julho.
"Nunca mais o despotismo regerá nossas ações
Com tiranos não combinam brasileiros corações..."
 O autor do verso é Ladislau dos Santos Titara.
Ele estava presente, ele era soldado, ele brigou na batalha e diz que ouviu.
Ora, entre o testemunho de Santos Titara, que estava lá e diz que ouviu o toque de corneta avançar cavalaria, que não tinha cavalaria nenhuma mesmo, mas meteu medo ao pessoal do outro lado. Entre o depoimento de Santos Titara e a interpretação de um historiador mais recente, eu prefiro ficar com o testemunho presencial, com alguém que viu a batalha.
Bom, ocorre a batalha de Pirajá, os portugueses são derrotados, voltam à cidade. A batalha é na noite de 07 para 08 de novembro de 1822.
Castro Alves não erra quando diz: "Era no Dois de Julho. A pugna imensa travara-se nos cerros da Bahia".
Lido de primeira, dá a impressão de que ele diz que a batalha foi no dia dois de julho. Não foi. A batalha foi o dia 07 de novembro.
Agora, era no Dois de Julho, sim. Era no ciclo do Dois de Julho, no episódio do Dois de Julho. O Dois de Julho se chama toda a campanha da independência, até hoje é dia do Dois de Julho, no tempo do Dois de Julho. O Dois de Julho ficou sendo a campanha da independência.
De novembro de ’22 a julho de 1823 são as demarches da rendição, não foi um desbaratamento. Labatut foi preso nessa altura pela vaidade dos homens.
Os brasileiros vencedores, os oficiais acharam que não era próprio que a entrada triunfal do exército vitorioso fosse comandada por um general francês, e foi quem fez a força e foi quem ganhou a batalha.
Não entrou, foi recolhido preso a Câmara de Vereadores de Maragogipe. Depois teve tempo bastante para requerer a sua reintegração, a sua reabilitação, morreu marechal do exército brasileiro numa casa dos Barris, que hoje se chama Rua General Labatut por causa disso. Morreu na sua casa ali, restaurado nas suas glórias e teve a satisfação de ver o seu busto em bronze no local do ingresso das tropas que foi o Largo da Lapinha.
 Por que Lapinha? Por que os caboclos saem da Lapinha e por que caboclos?
Vale a pena se considerar o assunto.
Nós tivemos, sim, tivemos índios combatendo na campanha da independência, os índios da Pedra Branca estavam aqui de arco e flecha, atirando em português. O exército era um exército feito como Deus foi servido fazer, o exército tinha o "Encourados do Pedrão" comandados pelo padre Brayner. Não havia dinheiro prá farda formal, não era uma coisa bonitinha, não era bem isso; era uma gente sob um comando, isso é que é verdade e não um exército no sentido de formatura, um exército de parada, não, era um exército de brigar.
De 07 de novembro a 02 de julho, todas as demarches pela rendição.
Aparece aí um nome curiosíssimo, que é pouco referido e vale a pena ser considerado: Manoel Inácio da Cunha Menezes.
Manoel Inácio da Cunha Menezes viveria muito, ele morreu em 1850, era um homem muito rico, era o homem mais rico da Bahia. Ele morou numa casa que, os mais velhos aqui devem ter visto, uma casa que era oAeroclube da Bahia, lá, no caminho que vai prá Itapoá. Ali era a casa de Manoel Inácio da Cunha Menezes, cuja propriedade ia do Rio Vermelho, daquela ponte que tem na Mariquita até a sede de praia do Bahia, hoje e para dentro em igual tamanho, um quadrado. Prá você ter uma idéia assim, do dinheiro de Manoel Inácio da Cunha Menezes.
Ele foi escolhido por Madeira de Melo e por Labatut, ainda por Labatut, para ser o mediador da rendição, Bandeira de Melo se retiraria. E retirou-se. Os navios portugueses que trouxeram os soldados foram os mesmos que levaram de volta os soldados.
Aí aconteceu uma coisa curiosíssima. Ao tempo em que foi contratado Labatut para ser o general das tropas terrestres, Lorde Cochrane foi contratado também mercenário, para ser comandante das forças do mar e no seu comando resultou que também não foi possível mais a Portugal mandar socorro para Madeira de Melo, teve que se avir com o que tinha e perdeu.
Como nos acordos feitos para a rendição, Cochrane não foi ouvido, ele disse que não tinha acabado a guerra para ele, não; continuou perseguindo os navios de Madeira de Melo até o porto de Lisboa e tomando navio e tomando gente e fazendo estripulias de todo tamanho no mar. Então, ele é um herói meio para se considerar devagar. Realmente ele brigou, mas ele não aceitou a rendição argumentando que não tinha sido perguntado sobre coisa nenhuma e que não estava obrigado a aceitar condições que não foram estipuladas por ele.
A tropa de Madeira de Melo ainda sofreu o que o diabo enjeitou até chegar ao porto de Lisboa.
Cachoeira, Santo Amaro, Itaparica, Maragogipe. Fiquemos em primeiro lugar com Itaparica, uma ilha. Uma ilha famosa por sua postura estratégica. Desde os holandeses, Itaparica dá dor de cabeça a quem quer brigar na Baía de Todos os Santos. Porque ela era uma ilha, hoje tem uma ponte, é uma ilha que fica entre o continente e o continente, dentro da Baía de Todos os Santos. E foi essa ilha que serviu de ponte, serviu de caminho para que canhões vindos do Morro de São Paulo atravessassem-na para hostilizar as tropas de Madeira de Melo comandadas por Labatut. E é essa mesma ilha que impediu que Madeira de Melo saltasse para fazer isso.
Então, nomes como João das Botas, nomes como Maria Felipa, que é uma versão itaparicana de Maria Quitéria; são nomes que têm que ser mencionados quando falamos em Itaparica.
De Santo Amaro há tanto que dizer que não há nada a ser dito senão parcelada e sem muita minudencia. A Ata da Câmara Municipal da cidade de Salvador, de 14 de junho de 1822 é um documento fundamental que honraria qualquer nação independente do mundo. É um documento ponderável, é um documento feito com a intenção de fazer uma independência planejada, não é uma independência açodada, não é uma independência feita em caráter de animação, mas uma independência feita planificadamente.
Essa ata, com as assinaturas de toda a gente que lá estava, os homens bons da governança, tem sido reproduzida e deveria ser mais reproduzida. Assim como antigamente, não sei se ainda hoje, se tinha na sala o quadro da Santa Ceia de Leonardo da Vinci; um bom santoamarense deveria ter a ata impressa pendurada na sua casa, porque é o documento que faz a independência. Antes da Constituição Brasileira, é a primeira Constituição independente que o Brasil tem, é a primeira Constituição independente que o Brasil tem é a Ata de Santo Amaro.
Em Cachoeira, a tomada da canhoneira; em Cachoeira, o 25 de junho que é o momento que as hostilidades se iniciam, que as hostilidades irrompem.
Maragogipe foi a prisão de Labatut.
Em suma, as vilas do Recôncavo, todas estão mobilizadas. A vila de São Francisco.
"Velho sino, hoje calado, não reflete mais sentença de alcaides-mores, alvarás de vice-reis", a poesia de Artur de Sales continua sendo a grande beleza, em termos poéticos, que a independência nos ofereceu depois do "Ode ao Dois de Julho". Depois da "Ode ao Dois de Julho" que ocupa o seu lugar.
Maria Quitéria de Jesus, que pegou um cunhado poltrão, um cunhado que não era de briga, que era Medeiros e usou o nome dele prá se ingressar na tropa, o soldado Medeiros. Não se casou com Medeiros nenhum, era o cunhado que não queria briga, tinha medo, ela tomou o nome dele e foi brigar como sendo o soldado Medeiros.
Mas a cidade fica libertada e passamos a festejar o Dois de Julho.
Agora, aí entra um fato curiosíssimo. Longe de ser uma comemoração, o Dois de Julho é um protesto. É preciso não perder de vista que o poder público, o poder público estadual, federal, municipal entra no Dois de Julho para pagar as despesas.
O poder público federal, estadual ou municipal é um aderente, é um aderente pagador às festas do Dois de Julho que são festas do povo. Quando se diz que os carros alegóricos são propriedade do Instituto Geográfico Histórico da Bahia, não é só porque é uma instituição que hoje atravessa uma fase boa e tal, não é por aí; é que realmente, quem promoveu o Dois de Julho, quem fez a festa do Dois de Julho foi o povo. Por uma razão simples, rico sempre se entendeu com rico, uma vez feita a independência, a província foi entregue aos vencedores e os vencedores eram os homens ricos do Recôncavo, que não tardaram a se confraternizar com os homens ricos da capital, os exportadores de açúcar. E o povo, o povo que fez a guerra, o povo que brigou, o povo que morreu enforcado e esquartejado em 1798, esse ficou de fora.
Então, em 1824, no ano imediato, este mesmo povo refez o itinerário da troca que entrou na cidade, entrou na cidade no Largo da Lapinha, é bom dizer isso, porque até o Largo Lapinha não era a cidade propriamente dita, era a Estrada das Boiadas, o limite urbano estava no Largo da Lapinha. Por isso é que houve um acordo entre Lima e Silva, que comandava a tropa que entrou na cidade, e Madeira de Melo, dele entrar após um tiro de festim, um tiro anunciando a retirada do último soldado do forte de Santo Alberto, aquele forte que fica na Água de Meninos, um fortinho pequeno, fica na parte baixa da ladeira de São Francisco de Paula.
Depois de um tiro de festim, é que as tropas entraram na cidade, tropas populares, diga-se de passagem. O quadro de Presciliano Silva bem retrata isso, os soldados andrajosos, soldados descalços, era o que havia para entrar na cidade. Esse povo foi marginalizado, esse povo foi posto fora de qualquer comemoração.
Então, ele refaz, esse povo refaz o percurso da tropa, desde a Lapinha até o Terreiro, na Catedral e coloca em cima de uma carreta de canhão um caboclo, um índio ao vivo. E a partir daí, é o índio quem passa a ser o símbolo do Dois de Julho, por uma razão óbvia, não podia ser um homem branco porque o branco representava o português contra o qual se brigava; não se colocou um escravo porque o escravo era um escravo e como tal, não era representante da cidadania, escolhe-se um símbolo mágico, um símbolo ideal do homem, é este índio que vai ser substituído no ano seguinte pelo índio que vocês conhecem. É esse índio ao qual se acrescenta mais tarde a cabocla.
Pois bem, meus amigos, e então, de lá para cá, o caboclo vem sendo o símbolo. É um desfile de protesto, é um desfile de descontentamento, é um desfile de falar mal de autoridade ou falar bem de autoridade. É esse o espírito do Dois de Julho, é esse o desfile do Dois de Julho.

Editado por José Spinola (dezembro de 2008)



Crédito: CID TEIXEIRA

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